Entrevista

Ana Maria Brandão, socióloga da Universidade do Minho

Em Portugal, a união de facto homossexual “é uma questão de cosmética”

Apesar da "pouca tradição" no activismo político LGBT, em Portugal, Ana Maria Brandão admite que algumas associações estão a mudar de estratégia para dar resposta às necessidades da sociedade, em matéria da homossexualidade. Ao evitar o isolamento de guetos gay, os movimentos LGBT que "esbatem fronteiras" superam o efeito inverso da "naturalização da diferença". No país, o governo "precisa é de tomar uma posição clara"perante a legalização do casamento e introduzir a educação sexual, nas escolas.

Como foi surgindo a politização do discurso científico no activismo LGBT?

Foi sendo sempre muito maioritário, na comunidade gay e lésbica, adoptar uma perspectiva de ‘defesa’, como modelo explicativo, onde a homossexualidade aparece como algo natural, inato, congénito…remetendo sempre para factores fora do controlo dos indivíduos e associados a uma tendência biológica. Bom, partindo-se daí para a naturalização de uma diferença, presumindo-se que há, à partida, uma diferença entre as pessoas, no que respeita ao objecto sexual que elas privilegiam.

Que consequências trazem a reprodução da naturalização da diferença?
Deixe-me só dizer-lhe que, em todo o caso, esta posição essencialista não é a única em todo o quadro de activismo gay e lésbico, e, nomeadamente, em Portugal existem algumas associações que não partem deste princípio. O problema da naturalização da diferença é apresentar-se como diferente do outro. Ao invés de esbater as fronteiras e mostrar que estas categorias sexuais são categorias sociais e que a realidade não é estanque, ou seja, que a sexualidade não é divisível em duas partes, a naturalização da diferença toma um efeito inverso e reforça a existência dessa divisão: da norma e da oposição à norma. Entendendo-se pelo que não está na norma, como sendo a homossexualidade, pois é o activismo mais forte, embora, não é a única…mesmo a heterossexualidade dificilmente ‘cabe’ na norma.

Em Portugal, notou diferenças, ao longo destes anos, nas formas de actuação por parte de organizações LGBT?
Em Portugal, temos muito pouca tradição a este nível. O activismo gay e lésbico, em Portugal, nasce nos anos 90 e, por isso, não temos uma história assim tão grande, que nos permita encontrar diferenças nas formas de actuação. Eventualmente, encontra diferenças nas bandeiras que foram erguidas ao longo desse tempo, mas não ao nível de activismo.

A rede ex-aequo, por exemplo, está a desenvolver o “Projecto educação”, no sentido de educar alunos e professores acerca da homossexualidade. Por não se restringir ao chamado gueto gay, dentro de outras organizações LGBT, considera que aquele projecto será uma forma de actuação inovadora, em Portugal?
Isso sim, obedece a uma diferença de estratégias no activismo gay e lésbico português, que é, a tentativa de chegar a espaços sociais, a locais onde, de outra forma, as pessoas não pertencentes a grandes cidades, dificilmente teriam acesso. As pessoas que vivem numa grande cidade, têm, em princípio, alguma facilidade em encontrar espaços de encontro, como bares, associações, etc. Há, portanto, uma transformação, em termos de adaptação estratégica das nossas associações, que é relativamente recente e que se traduz numa aposta em chegar a estes grupos, fazendo um trabalho de base, de sensibilização e de apoio, em espaços que não são convencionalmente gays e lésbicos.

Que tipo de medidas pode tomar o governo, para contribuir para a sensibilização da população portuguesa em relação ao assunto da homossexualidade, em geral?
Bom, antes de mais, o governo português, o que tem de assumir é uma posição clara sobre este assunto. Há certo tipo de questões, que pelos costumes portugueses, são sempre tratadas de uma forma ‘fria’. Por exemplo, na questão das uniões de facto, o que disseram foi que, supostamente, abriram as uniões de facto aos homossexuais, mas na prática isso não aconteceu. Portanto, é uma questão de ‘cosmética’ porque a alteração legal não teve efeitos para a igualdade de tratamentos. Agora, os partidos, neste momento, têm de assumir uma posição e de agir em conformidade com o que dizem, para que, de alguma forma, contribuam para o eliminar deste preconceito. Em termos de medidas de actuação, o casamento e a adopção seriam, já, duas medidas elementares, mas aquilo que certamente falta é a existência de uma Educação Sexual, nas escolas, que já desde 1974, se tem vindo a insistir nisso. E é neste contexto, que a informação, nomeadamente sobre a homossexualidade, seria transmitida aos alunos para poderem ser trabalhados. Portanto, o problema não tem a ver com o preconceito exclusivamente, é um problema de raiz.

O que pensa do facto de o primeiro-ministro português ter excluído a adopção por casais homossexuais, da moção do PS, contemplando apenas o casamento homossexual?
Presumo que há algumas pessoas que assumirão que essas alterações devam ser feitas por fases. Como se costuma dizer, para “agradar a gregos e a troianos” vão introduzindo, assim, gradualmente as alterações, em vez de haver uma discussão clara. O que eu sei é que, mais tarde ou mais cedo, a questão da adopção vai ser colocada. Neste momento, é complicado, porque, para todos os efeitos, estamos a lidar com a legislação, que é promulgada na Assembleia da República, tendo portanto, interesses político-partidários por trás e os partidos fazem contas aos votantes. E, embora as sondagens tenham demonstrado uma redução do preconceito sobre a homossexualidade, a realidade é que ele continua a ter uma posição muito forte nas pessoas. Contudo, não se deve pensar que se tem de eliminar primeiro o preconceito para depois efectuar as alterações na lei, até porque as leis são uma forma importante de dar um sinal às pessoas, no sentido de elas perceberem quais são as suas liberdades e as liberdades dos outros.

Na perspectiva analítica do discurso político no activismo LGBT, comente o facto de António Serzedelo, fundador da Opus Gay, ter dito o seguinte: “Nós lutamos pelo nome casamento.”
O facto de não quererem legalizar as uniões homossexuais com a palavra casamento é, claramente, um factor, em termos simbólicos, de discriminação. Se não se permite aos homossexuais que utilizem e tenham acesso ao termo casamento, estamos a considerar que há uma forma de união que é exclusivamente dirigida a algumas pessoas e que serão sempre, simbolicamente, melhores do que as outras. Até a união de facto heterossexual não é equivalente ao casamento heterossexual. Portanto, do ponto de vista simbólico, eu entendo a pressão das associações no sentido de quererem que a palavra 'casamento’ seja aceite. Isso sim, seria a admissão de uma situação paritária.

Considera que, da mesma forma, mas em sentido inverso, a existência de uma linha de apoio à vítima de violência doméstica homossexual, disponibilizada pela APAV, com o apoio da Associação ILGA, bem como as ‘polícias gays’ noutros países, são uma forma de naturalização da diferença?
Na minha opinião pessoal, mais uma vez, isso é reforçar a diferença, em vez de mostrar a semelhança em relação aos outros. Se toda a gente perceber e se as pessoas não tiverem preconceitos, não é preciso, por exemplo, ser um polícia gay para defender alguém que está a ser agredido por ser gay. Até porque, a partir do momento em que isso está consagrado na constituição, é obrigação de qualquer agente policial defender um cidadão. Da mesma forma, que a linha de apoio à vítima de violência doméstica geral deveria estar estabelecida para todas as pessoas vítimas de violência doméstica, independentemente da sua orientação sexual.

Entrevista realizada no dia 14 de Maio de 2009, no gabinete de Ana Maria Brandão, no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade do Minho.


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Casamentos homossexuais | Universidade do Minho | Instituto de Ciências Socias | Ciências da Comunicação | Braga, 2009